domingo, 8 de agosto de 2010

entrevista de lula na istoe


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"Ninguém vai destruir minha relação com a sociedade" - Parte 1
Carlos José Marques, Delmo Moreira, Mário Simas Filho e Octávio Costa


ENCONTRO COM EDITORES
“Fico feliz em saber que ninguém quer fazer campanha falando mal de mim”

Antes de iniciar a conversa com ISTOÉ, o presidente Lula mostrou que estava disposto a dar uma entrevista reveladora. “Vamos combinar o seguinte: podem fazer qualquer pergunta, por mais inconveniente que pareça”, disse ele ao ocupar a cabeceira da comprida mesa de reuniões no seu gabinete improvisado no Centro Cultural Banco do Brasil. “Vamos adotar o seguinte: é probido proibir”, afirmou.

E assim foi. Animado, coloquial e bem-humorado, Lula falou por quase duas horas com a equipe de ISTOÉ, sem recusar nenhum tema proposto. Em dois momentos mostrou um especial estado de espírito. Primeiro um largo sorriso quando recebeu de um assessor, durante a entrevista, os dados da última pesquisa Sensus/Ibope que dava 10% de vantagem à sua candidata Dilma Rousseff sobre o oposicionista José Serra. Pouco depois, o presidente ficaria com o olhos marejados quando falava dos principais legados que julga deixar para o País: “Hoje os pobres sabem que podem chegar lá.”

ISTOÉ – O sr. deixa o Planalto como o presidente mais popular da história do País. Como pensa em administrar esse patrimônio depois de sair do governo?
Luiz Inácio Lula da Silva – O meu medo é tomar uma atitude precipitada sobre o que eu vou fazer. Montar alguma coisa e depois de seis meses descobrir que não era aquilo. Então, eu acho que alguém que deixa o mandato, como vou deixar, numa situação graças a Deus muito confortável, tem que dar um tempo de maturação. Preciso de um tempo, quem sabe quatro, cinco, seis meses. Tem que deixar a Dilma construir um governo que seja a cara dela, do jeito dela, e eu ficarei no meu canto, curtindo o fato de ser um ex-presidente da República.

ISTOÉ – Isso é possível, presidente?
Lula – O Felipe González (ex-primeiro-ministro da Espanha) contou-me uma história que eu faço questão de repetir. Ex-presidente é que nem aquele vaso chinês que você ganha de presente. Você não sabe onde colocar o ex-presidente. Ele passa a ser incômodo se não se tocar que é um ex-presidente. Essa é a parte mais séria da história. Quero dar um tempo maior. O que eu pretendo fazer? O acúmulo de acertos nas políticas sociais que nós tivemos no Brasil precisa ser socializado. Eu quero socializar essas políticas com os países da América do Sul, do Caribe, com os países africanos. Eu já tenho muitos convites de países africanos para ir lá e mostrar a ideia e o que nós fizemos. Mas é para ir lá com tempo, para ir a campo.

ISTOÉ – O sr. fará as caravanas internacionais, então?
Lula – Eu não sei se serão as caravanas como as que eu fazia aqui no Brasil. Mas pretendo construir uma equipe de companheiros que acumularam oito anos de experiência no governo e 30 anos de experiência enquanto oposição, para que a gente tente colocar em prática, junto aos governantes dos países mais pobres, as condições de eles terem uma política de desenvolvimento social.

ISTOÉ – É preciso ter um cargo para isso, como o de presidente do Banco Mundial?
Lula – Não. É só a vontade política.

ISTOÉ – Mas vários governantes falam de seu nome para ocupar um organismo internacional multilateral. O que o sr. acha disso?
Lula – Tenho companheiros que falam, olha Lula você vai para a ONU. Eu tenho uma ideia diferente. Acho que a ONU é uma instituição que tem que ser dirigida por um burocrata, que tenha a consciência de que ela é subordinada aos presidentes dos países. Porque se você coloca alguém lá, que, por coincidência, tenha mais força que alguns presidentes, haverá, no mínimo, uma anomalia. Você fica com uma instituição criada para servir os países com gente mandando mais. Imagine se a moda pega e os ex-presidentes americanos resolvem ser secretário-geral da ONU.

“Quando Dilma veio para a Casa Civil percebi que eu estava
diante de um animal político não trabalhado”

“Devo muito do sucesso do meu governo ao Palocci. Talvez pela qualidade
de médico, de não sentir a dor que sente o paciente, ele manejava a economia com
a maestria que um economista não teria”

ISTOÉ – Mas o sr. recusaria um convite nessa direção?
Lula – Eu recusaria. Recusaria essa coisa de Banco Mundial. Eu tenho consciência do seguinte: tenho 64 anos e quando deixar a Presidência vou ter 65 anos, logo ainda tenho uma contribuição política para dar ao País. Eu sonho com a construção de uma frente ampla no Brasil. Juntar as forças políticas aqui, construir um programa comum, fazer a reforma partidária, que acho que é uma condição sine qua non para a gente poder mudar em definitivo o Brasil. Temos que fazer a reforma partidária. Isso não é coisa de presidente da República. Isso é coisa dos partidos políticos. E eu, de fora, pretendo ajudar o meu partido a organizar os outros partidos em torno da ideia da reforma política.

ISTOÉ – O projeto de um instituto para irradiar essas ideias também está em curso?
Lula – Também está em conta. Mas agora estou com a minha cabeça voltada para o seguinte: tenho mais cinco meses de governo. Tem muita coisa para acontecer, e sabe do que eu tenho medo? Eu sou muito amante do futebol e o que eu jamais faria como técnico é marcar um gol, correr para a retranca e ficar esperando o adversário vir para cima de mim. Então, tenho muito trabalho pela frente. Quero trabalhar até o dia 31 de dezembro. Tenho agenda até o dia 29 de dezembro, tenho agenda no dia 28 de dezembro, eu quero ter agenda até o último dia de trabalho. No dia que eu entregar a faixa para quem for eleito presidente da República, aí sim...

ISTOÉ – Presidente, pelas pesquisas atuais, há uma grande chance de o sr. entregar a faixa para a ex-ministra Dilma Rousseff. A que o sr. atribui o êxito de Dilma? Foi graças ao empenho do sr.? É o perfil dela?
Lula – Acho que há um conjunto de valores. Primeiro, é preciso ter muita humildade para pedir para o povo votar na Dilma. Um voto é um direito livre e soberano de cada cidadão, mas, como eu passei por aqui oito anos e sei como funciona isso, sinto-me na obrigação de dizer ao povo quem eu entendo que poderia dar continuidade àquilo que nós estamos fazendo. Esta é a primeira coisa com que nós temos que ter todo o cuidado. A segunda coisa é a seguinte: um governo que tem 76% de bom e ótimo nos últimos cinco meses de mandato, um presidente da República que tem 86% de bom e ótimo e se colocar regular vai a 98%, 97% em alguns Estados, é um governo com forte possibilidade de fazer a sucessão. Tem uma aliança política muito forte. Tem muitos candidatos a governador apoiando a ministra Dilma. Ela está muito bem preparada, não tem hoje no Brasil ninguém mais preparado do que a Dilma, do ponto de vista de ter o Brasil na cabeça.

ISTOÉ – Mas o sr. construiu sua candidata do zero, não é, presidente?
Lula – É por isso que nós preparamos o PAC 2. Porque eu poderia deixar para ela preparar em janeiro. Mas o que eu quis na verdade foi, primeiro, definir as obras prioritárias para o Brasil com os governadores e os prefeitos, colocar dinheiro tanto no orçamento quanto na LDO. Então quem começar a governar não vai ter que encher a bola. A bola vai estar cheia e o cara vai começar jogando. Eu acho que a Dilma está extremamente preparada e madura politicamente. Acho que a vantagem da Dilma é que ela não tinha pretensão. Acho que jamais passou pela cabeça da Dilma que ela seria escolhida candidata a presidente da República

ISTOÉ – E na cabeça do sr. qual foi o primeiro momento?
Lula – O primeiro momento que me veio na cabeça foi quando eu, na Favela da Rocinha, no Rio, disse que ela era a mãe do PAC. Ali, na verdade, eu estava começando a preparar.

ISTOÉ – O sr. chegou já chegou lá com a ideia de fazer essa declaração?
Lula – Foi na hora, em função do clima, que eu falei. E foi importante naquele momento.

ISTOÉ – Muita gente pensava que sua candidata seria a Marina Silva, que, pelo histórico, era considerada o Lula de saias. Por que a Marina Silva não foi a sua escolha?
Lula – Quando a gente vai escolher alguém para ser presidente da República, essa pessoa tem que ter um acúmulo de qualidades, e não apenas um pouco de qualidades. A Marina é minha companheira de 30 anos. Vocês jamais ouvirão da minha boca uma palavra ou uma vírgula que possa falar mal da Marina. Um ano antes de deixar o governo, a Marina pediu demissão. Eu não aceitei a demissão dela por conta da Dilma Rousseff. A Dilma e o Gilberto Carvalho me pediram para convencê-la a ficar. Ela ficou mais um ano, até que quis sair. Até hoje não me explicou por que saiu do PT e eu não fui tomar satisfação do motivo por que ela saiu.

“De vez em quando adoto uma máxima do Chico Buarque:
tem que ouvir o ministério do que vai dar merda”

“O parlamentarismo não dará certo, como não dará
certo uma cooperativa se você criá-la de cima para baixo”

“É muito melhor para o candidato se ele tiver um presidente
do qual não tenha vergonha de dizer que é apoiado por
ele, como o Al Gore fez com o Bill Clinton”

ISTOÉ – Antes da Dilma, o sr. chegou a pensar em outros nomes? No seu primeiro mandato havia Palocci, José Dirceu...
Lula – Obviamente, se não tivesse acontecido com o PT o que aconteceu em 2005, o quadro político poderia ser outro. Mas a Dilma, então, veio para a Casa Civil. E eu já contei que a Dilma foi escolhida ministra de Minas e Energia por conta de uma reunião que eu estava fazendo em São Paulo, preparando 2002. Quando ela chegou, depois de uma hora de reunião, eu falei: é a minha ministra. Tanto é que o Zé Dirceu já tinha feito acordo com o PMDB para ter o Ministério de Minas e Energia e eu disse: “Desfaça tudo porque eu já tenho a ministra.” E ela foi de uma competência exuberante na construção do marco regulatório do modelo de energia elétrica do Brasil. Quando ela veio para a Casa Civil começamos a trabalhar juntos, a nos reunir cotidianamente, a discutir as reuniões. Aí eu percebi que estava diante de um animal político não trabalhado. De um animal político que foi educado a vida inteira para ser técnica. E eu comecei a falar: bom, agora nós temos que descobrir o lado político de Dilma.

ISTOÉ – E como o sr. fez?
Lula – Fui colocando a Dilma em várias reuniões das quais, teoricamente, ela não precisaria participar. Comecei a levá-la para viajar comigo para que começasse a ver o mundo de uma concepção mais política. Eu acho que hoje ela é uma figura extraordinariamente preparada. Lógico que na política você está sempre se preparando. Às vezes, as pessoas ficam comparando a Dilma comigo. Mas não é possível, porque eu venho de um mundo diferente. Comecei diferente. E tenho um acúmulo diferente.

ISTOÉ – Mas a geração é a mesma...
Lula – É a mesma, mas traçamos caminhos diferentes. Eu acho que o que é importante é que ela é hoje uma mulher sem ressentimentos, sem mágoa. Eu conto sempre o dia em que eu desci com Dilma de helicóptero no Quartel do 2º Exército em São Paulo. Quando o helicóptero parou, ela ficou olhando, olhando e disse: “Foi aqui que eu fui trazida quando fui presa.” E depois me disse: “Engraçado, não estou ressentida.” Descemos lá, fomos tomar café, cumprimentamos todo mundo. Eu achei isso um gesto de superação, o que é importante para alguém governar esse país. Quando chega ao cargo de presidente da República, ninguém tem o direito de ter mágoa, rancor, ressentimento, de dizer eu não gosto de fulano. Não tem esse direito.

ISTOÉ – Um dos ministros mais importantes para o sr. foi o Palocci, que agora está na campanha de Dilma. Como o sr. vê o papel dele num eventual futuro governo Dilma?
Lula – Esse é um problema do futuro governo. Mas eu vou dizer o que penso do Palocci. Acho que no Brasil nós temos, se é que temos, raríssimas pessoas com a inteligência política do Palocci. Digo sempre que eu credito uma parte do sucesso do meu governo aos primeiros dois anos, quando nós tivemos que comer carvão em vez de filé mignon. Quando tivemos que trocar todo o capital político que eu tinha por uma política fiscal dura. Assim, a gente pôde chegar aonde chegou. Possivelmente, se não fosse o Palocci, nós não teríamos feito isso. Talvez pela qualidade de médico, de não sentir a dor que sente o paciente, ele manejava a economia com uma maestria que possivelmente um economista não manejasse. Eu devo muito do sucesso do meu governo ao Palocci. Ele é um animal político que certamente dará contribuições enormes a esse país. Ele é muito jovem e acho que ainda tem muita contribuição para dar.

ISTOÉ – A Dilma não era uma escolha clara do PT, mas o sr. fez valer sua vontade. O sr. acha que ficou maior do que o PT?
Lula – É humanamente impossível fazer qualquer teste de DNA no PT e não me encontrar lá dentro. Da mesma forma é muito difícil fazer um DNA em mim e não encontrar o PT aqui dentro. O fato de eu ter sido presidente me transformou numa figura infinitamente mais projetada do que o PT. Mas isso não significa que eu seja maior do que o PT. É um partido muito organizado no Brasil inteiro, que tem muita força. Agora, acho que nós temos condições de construir uma coisa mais forte. Eu tenho dito a alguns companheiros que não é uma tarefa fácil, mas eu gostaria de criar, dentro de um processo de reforma política, uma frente ampla de partidos que pudesse construir um programa para o Brasil, mais forte do que um partido. Pode ter gente de todos os partidos, pode ter a maioria dos partidos.



ISTOÉ – Isto seria o fim do PT?
Lula – Não. É uma espécie de seleção brasileira. O Corinthians não deixa de ser Corinthians porque o Mano Menezes convocou o Jucilei. E nenhum time deixa de ser porque teve craques convocados. É uma coisa maior para construir um arco de alianças maior.

ISTOÉ – Esse grupo poderia ter o PSDB?
Lula – Eu acho que acabou o tempo da ilusão em que a gente poderia trabalhar junto com o PSDB. Eu acreditei nisso. E muita gente do PT acreditou nisso.

ISTOÉ – O sr. acha que o PSDB foi para a direita?
Lula – Acho que eles escolheram outro projeto. Vocês estão lembrados que, logo que o Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência, ele juntou gente que na época se comportava como de esquerda, como o PPS. Aquelas pessoas achavam que iriam ter uma participação no governo. Qual foi o problema? Foi a reeleição, que conduziu para uma relação promíscua com o Congresso Nacional e a coisa desandou um pouco. Essas coisas são muito fáceis de falar, mas é muito difícil fazer, porque para construir uma frente ampla é preciso construir uma direção partidária, que as pessoas respeitem, que vejam nela uma liderança. De qualquer forma, como vou ter tempo, essa questão política vai voltar com muita força na minha cabeça. Acho que nós temos que fazer um reforma para moralizar a política no Brasil, fortalecer os partidos políticos, para moralizar a fidelidade partidária, para parar com esse negócio de judicializar a política como ela está judicializada. Isso se faz com o debate político. E eu quero estar vivo no debate político.

“Tem rico que vem aqui, te pede um bilhão de reais e sai falando mal de
você. O pobre te pede dez reais e fica agradecido pelo resto da vida”

“O que leva um homem a ter preconceito contra um ser humano que o
carregou na barriga nove meses? Que o limpou enquanto ele não sabia se limpar?
Vamos ser francos: o nosso caráter é o da nossa mãe”

ISTOÉ – Como sua imagem, que nem os adversários atacam nesta campanha, pode ser usada sem ofuscar a candidata? Qual é a dosagem certa?
Lula – Fico feliz em saber que ninguém quer fazer campanha falando mal de mim. É uma coisa boa, é agradável. Mas eu tenho um lado, um partido e um candidato. E isso eu faço questão de deixar público durante o processo eleitoral. Uma coisa a gente tem que compreender: eu cito muito futebol porque futebol é a coisa mais fácil do povo entender. Não existe a possibilidade de o Lula ofuscar a grandeza da candidata, porque vai chegando o momento em que o clima na sociedade, na imprensa, no debate, é da candidata, não é do presidente. A sociedade vai percebendo isso. É muito melhor para a candidata se ela tiver um presidente que ela não tenha que ter vergonha de dizer que é apoiada por ele, como o Al Gore fez com o Bill Clinton.

ISTOÉ – O PT não terá mais influência num governo de Dilma do que teve no seu?
Lula – Quem fala isso não conhece a Dilma. Ela é uma mulher de personalidade muito forte. O PT está na direção da campanha da Dilma, como estava na direção da minha.

ISTOÉ – Mesmo o relacionamento do sr. com o PT foi mudando...
Lula – A minha relação com o PT era diferente porque eu fui o criador do PT. Fui 13 anos presidente do PT. A minha relação com o partido sempre foi diferente da relação da Dilma, que é uma filiada. A direção do PT hoje está totalmente afinada com a candidata e a candidata totalmente afinada com a direção.

ISTOÉ – E aquele episódio do programa de governo diferente, apresentado pelo PT?
Lula – Vocês não podem errar e confundir uma tese com o programa. Quando se constrói um programa suprapartidário, cada partido constrói uma palavra, uma vírgula. Enquanto não há operação definitiva que diga “está pronto o programa”, não é programa, é pré-programa. E no pré-programa entra qualquer coisa. O programa não é do PT nem pode ser. O programa tem que ser uma síntese do pensamento dos partidos que compõem a base de apoio da ministra Dilma. É com isso que ela vai governar o País. E ela e o partido têm clareza disso.

ISTOÉ – O sr. acha que ela conseguirá ter ascendência política sobre o partido?
Lula – Vai ter. Deus queira que ela não tenha muita ascendência, porque não é importante que a candidata passe a ser muito mais forte, porque pode querer desrespeitar o partido. Eu quero que ela passe a ter uma relação com o partido de liderança, de respeito, que não tenham medo dela. Eu quero que os dois se respeitem. Se os dois se respeitarem, eles vão divergir, vão brigar, mas vão construir o melhor.

ISTOÉ – Como o sr. vê a relação com o PMDB, tradicionalmente fisiológico, que exige ministérios e muitos cargos no governo?
Lula – Eu não acho que seja assim. Nós temos que levar em conta que o PMDB é um partido forte. E que continuará sendo. É um partido que tem muitos vereadores, muitos prefeitos, muitos deputados, muitos senadores. Sempre, qualquer que seja o governo, de ultraesquerda ou de ultradireita, será preciso trabalhar com o PMDB. Quando nós fizemos a Constituição de 1988, esse foi um equívoco. Nós construímos uma carta parlamentarista. Fizemos um plebiscito e o parlamentarismo tomou uma trolha de 80%. Só para vocês saberem, a direção do PT, da qual eu fazia parte, era parlamentarista. Mas eu ia para o debate e o pessoal falava assim para mim: “Ô Lula! Você é tonto, rapaz! Agora que está chegando a hora de a gente chegar ao poder você quer transferir poder para o Congresso te eleger? Não vão te eleger nunca.” Nós perdemos internamente no PT. A direção tomou uma surra. Acho que mais de 70% ficaram contra a direção.

ISTOÉ – O sr. continua parlamentarista?
Lula – Eu acho que tudo está ligado à evolução cultural da sociedade. O parlamentarismo não dará certo, como não dará certo uma cooperativa, se você criá-lo de cima para baixo. Eu, por exemplo, trabalhava com a ideia de que era favorável ao voto distrital. Como eu imaginei organizar o PT por núcleos, em cada rua, em cada vila, pensava numa organização tão forte que não haveria dinheiro no mundo capaz de ganhar uma eleição de você. Eu sonhava isso. Você teria como candidatos as grande personalidades e as lideranças sociais. Mas muita gente no PT não acreditava nisso. Defendiam que tem que se pedir voto para todo mundo. Mas essa história favorece quem? Quem tem dinheiro. Eu conheci deputado que pegava helicóptero e viajava para o interior para passar a tarde carregando gente. Parava em campo de futebol, colocava o sujeito dentro do helicóptero e dava uma volta. Ganhava o voto do tadinho que nunca andou de helicóptero. Mas também esse processo de mudança não pode ser um estupro. Ter a maioria e empurrar na garganta da minoria, não. O problema é que não há muito debate.



"Ninguém vai destruir minha relação com a sociedade" - Parte 2
Carlos José Marques, Delmo Moreira, Mário Simas Filho e Octávio Costa

ISTOÉ – O sr. espera que sua ideia de frente ampla mude o modo de fazer política no País?
Lula – Eu quero ter esse papel aqui dentro. Também tenho discutido muito em nível internacional. Muita gente já conversou comigo para que eu tivesse um papel na Internacional Socialista. Mas acho que a Internacional Socialista tem a cara da Europa, não tem a cara da América Latina. Eu seria um estranho no ninho. Mas eu quero também contribuir para que a gente discuta um pouco uma organização política aqui na América Latina.

“Hoje agradeço por todos os santos o segundo turno
com o Alckmin, porque eu pude lavar a minha alma”

“Quando você tem um político cretino, ele não quer que
seu aliado ganhe, mas, sim, que o adversário ganhe”

“Eu quero estar vivo no debate político”

ISTOÉ – Nos mesmos termos?
Lula – Eu não sei ainda. Mudou a cara política da América Latina, mas os partidos continuam os mesmos. As forças são as mesmas. A gente não evoluiu na organização internacional. O que é o partido do Chávez? Ou os partidos políticos na Argentina? Lá tem um monte de partidos políticos, mas todos são peronistas. O Uruguai tem o partido mais organizadinho, com a Frente Ampla. No Paraguai, o presidente foi eleito por fora dos dois maiores partidos. É juntar essa coisa toda e começar a elaborar possivelmente uma nova doutrina da criação de uma instituição política que pense em uniformizar determinados princípios na América Latina. Sem o dogmatismo do manifesto, que não venha com aquele negócio da terceira, quarta internacional, não quero mais saber disso.

ISTOÉ – Há um temor no meio empresarial de um futuro governo da Dilma ser mais estatizante que o seu.
Lula – Não há essa hipótese. Eu conheço bem a Dilma e sei o que ela pensa. Obviamente que nós não queremos ser estatizantes, mas também não vamos carregar a pecha que nos imputaram nos anos 80, quando se dizia que o Estado não valia nada e que o mercado era o Deus todo-poderoso. Essa crise americana mostrou que o mercado é frágil, é corrupto e que quem tinha o Estado mais forte salvou-se primeiro. No caso do Brasil, se não tivéssemos o Banco do Brasil, como é que a gente iria comprar a carteira de financiamento de carro usado do Votorantim? Eu cheguei para o Banco do Brasil e para o companheiro Guido Mantega (ministro da Fazenda) e disse: “Companheiros, nós não podemos deixar quebrar as finanças de carro usado, porque se não vender carro usado não tem compra de carro novo.” Eu perguntei para o Dida (presidente do Banco do Brasil, Aldemir Bendine): “Como o Banco do Brasil está? Pode financiar carro usado?” “Ah! Nós não temos expertise, presidente.” Eu perguntei, o que a gente faz então? “A gente tem que formar.” Que formar, o quê! Não temos tempo de formar, a crise está aqui, batendo à porta. Vamos comprar de quem tem. O Votorantim tem, quer vender? Então compramos 50% da expertise do Votorantim. Acabou o problema. O Serra queria vender a Caixa Econômica Estadual. Começaram a falar para mim: “Você não pode comprar, porque o Serra é candidato, é adversário, o Serra vai juntar muito dinheiro para a campanha.” Eu disse: vocês são doidos! Acham que, por causa da campanha do Serra, vou deixar de comprar um banco que permitirá que o Banco do Brasil volte a ser o maior do País? Quem vai fiscalizar o dinheiro do Serra é a Justiça Eleitoral, não serei eu. Nós vamos comprar. E compramos.

“Acabou o tempo da ilusão de que a gente poderia trabalhar junto com o PSDB”

“O fato de eu ter sido presidente me transformou numa figura infinitamente
mais projetada do que o PT. Mas isso não significa que eu seja maior que o PT”

“Quem chega ao cargo de presidente não tem o direito
de ter mágoa, rancor, de dizer que não gosta de fulano”

ISTOÉ – O sr. considera que estes foram dois grandes momentos no enfrentamento da crise?
Lula – Quando a gente chega aqui é menos teoria e mais prática. Quando a gente está na oposição, está discutindo. Você fica numa mesa de bar conversando e diz: eu penso isso, eu penso aquilo. Quando senta naquela cadeira de presidente, você não acha, você não pensa, você não acredita. Você faz ou não faz. E tem que tomar decisão na hora. Não tem que se preocupar com a repercussão. Eu, de vez em quando, adoto uma máxima do Chico Buarque: tem que ouvir o ministério do que vai dar merda. Aprendi antes de tomar a decisão a chamar outras pessoas para perguntar: isso aqui vai dar merda ou não? Governar é uma coisa engraçada. Uma vez o Gilberto Gil propôs a criação da Ancinave. Era uma proposta. De repente a gente estava tomando porrada de todos os lados. Eu reuni numa mesa todos os ministros envolvidos naquilo: Justiça, Fazenda, Indústria e Comércio, Cultura, Secom e mais uns três ou quatro. Disse que nós estávamos apanhando muito na imprensa e que eu precisava saber se todos nós estávamos de acordo com a proposta na mesa. Foi fantástico. Nenhum ministro concordava com a proposta. Porque era uma proposta para debate e surgiu como se fosse uma proposta acabada do governo. Então eu falei: “Alguém tem que comunicar à imprensa que está retirada a proposta. Se ninguém defende a proposta, por que vai continuar?” No governo ou você toma a decisão rapidamente ou é engolido rapidamente.

ISTOÉ – O Brasil, apesar dos preconceitos machistas, está pronto para ser presidido por uma mulher?
Lula – O preconceito é uma coisa cultural muito forte no mundo e no Brasil. Mas a ascensão das mulheres nos últimos 20 anos é uma coisa extraordinária. Fui num debate com empresários no Paraná na sexta-feira passada e eu dizia a eles: o que leva um homem a ter preconceito contra um ser humano que o carregou na barriga nove meses? Que o limpou enquanto ele não sabia se limpar? Que o ensinou a comer quando ele não sabia comer? Que formou o seu caráter e que continuou cuidando dele até ele se casar? E só parou quando a sogra começou a se invocar? Qual é a razão que a gente tem para não acreditar num ser que fez a gente? Vamos ser francos: o nosso caráter é o da nossa mãe. A gente pode adorar o pai da gente, mas na hora, que a gente caiu quem estava do nosso lado era nossa mãe. Na hora que a gente tinha dor de barriga quem estava conosco era nossa mãe. Na hora que a gente acordava de noite chorando quem estava do nosso lado era nossa mãe. Quem levantava para trocar nossa fralda de noite era nossa mãe. Quem colocava mamadeira na nossa boca de manhã era nossa mãe. Quem dava o peito para a gente machucar era nossa mãe. Por que nós temos preconceito contra essa figura tão nobre? Eu tenho dito para a Dilma que ela tem que dizer: “Eu não vou governar o Brasil. Eu vou cuidar do povo brasileiro.” Porque a palavra correta é cuidar. E cuidar da parte mais pobre. Tem rico que vem aqui, te pede um bilhão de reais e sai falando mal de você. O pobre te pede dez reais e fica agradecido pelo resto da vida. Então, nós temos que cuidar do povo. Esse país não pode continuar com o povo esquecido. Eu acho que nós vamos vencer o preconceito.



ISTOÉ – Acha que foram superados preconceitos que havia contra o sr.?
Lula – Eu fui vítima de muito preconceito. Nas primeiras eleições que perdi, eu perdi porque o pobre não confiava em mim. E eu não tinha mágoa do pobre por isso. Mas ele me via e dizia: se esse cara é igual a mim, por que eu vou votar nele? Era isso que levava o pobre a desconfiar de mim. Eu precisei perder três eleições, amadureci muito, e a sociedade foi amadurecendo até compreender que poderia votar em mim. Hoje, eu acho que o grande legado que vai ficar da minha passagem pela Presidência são os pobres desse país estarem acreditando que eles podem chegar lá. É isso que eu quero fazer com a mulher. A mulher não é apenas a maioria numérica. Em muitas funções, a mulher é igual ou mais competente do que os homens. Todos vocês são casados e suas mulheres são mais corajosas do que vocês. E a minha também. As nossas mulheres têm coragem de fazer brigas que nós não fazemos. Às vezes, o vizinho enche o saco e nós dizemos que vamos conversar. E a mulher diz: “Não tem essa não.” Ela abre a porta e vai lá. Eu acho isso uma coisa estupenda. A coragem da Marisa para tomar decisão é infinitamente maior do que a minha. Com ela, eu tenho que contemporizar. Não, não vamos brigar agora. E ela diz que tem que resolver já, não tem meio-termo. E eu acho que toda mulher é assim.

ISTOÉ – Como o sr. vê José Serra como adversário de Dilma?
Lula – Para mim, essa é uma eleição engraçada. Três candidatos de oposição foram do meu partido: Marina Silva, do PV, José Maria, do PSTU e Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL. E o Serra é uma pessoa com quem eu tenho uma relação de respeito muito antiga. Quando vejo eles debatendo, não tenho nenhum inimigo. Tenho alguns adversários disputando com a minha candidata. E eu acho que o Serra deu azar. Deu azar de disputar comigo quando eu não podia perder. Digo do fundo da alma, eu nunca tive a menor preocupação de que não ganharia aquela eleição de 2002. Eu estava convencido de que era a minha vez, que tinha chegado a hora. Eu tinha participado da candidatura do (Franco) Montoro e sabia como era isto. Em 1982, não adiantava nada, aquela era a hora do Montoro ser governador. Podia falar o que quisesse. Que ele tinha 20, 80 aposentadorias. Era a hora dele. E foi. Em 2002, eu sabia que era a minha hora. Eu lembro que quando não ganhei no primeiro turno, cheguei no gabinete à noite e havia uns 100 delegados da América Latina, todo mundo lá triste. Estavam lá o Zé Dirceu e o Duda Mendonça na frente da telinha medindo voto, dizendo que ia dar por meio ponto. E eu disse: “Gente, deixa para lá. Tanto faz primeiro ou segundo turno.Vai apenas demorar um pouco mais. E vai ter uma diferença bem maior depois.” E foi uma coisa extraordinária porque o segundo turno permite que você tenha um embate direto. Eu hoje agradeço por todos os santos o segundo turno com o Alckmin, porque eu pude lavar a minha alma. Eu pude aumentar a minha votação em 12 milhões de votos. E ele perdeu três milhões de votos, uma coisa inédita.

ISTOÉ – E qual é exatamente o azar do Serra, presidente?
Lula – Ele foi candidato num ano em que eu não tinha como perder as eleições. E ele agora é candidato num ano em que a Dilma tem todas as condições de ganhar as eleições porque o governo está muito bem e porque as coisas vão melhorar.

ISTOÉ – O sr. acredita em decisão já no primeiro turno?
Lula – Eu acredito no processo eleitoral. Para mim, não importa que seja no primeiro ou no segundo turno. Nós temos é que ganhar as eleições. Temos que trabalhar para ganhar as eleições. E eu acho que é uma eleição que pode terminar no primeiro turno. Mas se for para o segundo turno não existe nenhum problema, nenhum trauma. Nós vamos fazer uma bela campanha.

ISTOÉ – Fala-se muito que há uma grande possibilidade de, em 2014, o presidente eleito agora ter o sr. pela frente. Como está desenhada essa possibilidade?
Lula – Vamos colocar a política no seu devido lugar. Quando você tem um político cretino, ele não quer que o seu aliado ganhe, mas, sim, o adversário para ele voltar quatro anos depois. No meu caso, eu lancei a Dilma candidata porque eu quero que ela ganhe. E porque eu quero que ela faça um governo melhor do que o meu. E que ela tenha direito a ser candidata à reeleição. É um direito legítimo dela. Não tem essa de que a Dilma vai ser candidata para o Lula voltar em 2014. Não existe essa hipótese. Se a Dilma for eleita ela vai fazer um governo extraordinário e vai ser candidata à reeleição. Se o candidato for um adversário, a história muda de figura. Mas, aí, eu preciso estar bem, porque eu já vou estar com 69 anos. E com 69 anos você parece novo, mas não é tão novo, não. Eu, às vezes, acho que na política deveria ser que nem na Igreja Católica, onde o bispo se aposenta com 75 anos.



ISTOÉ – A mais ousada ação do seu governo na política externa nos últimos tempos foi a intermediação da questão atômica com o Irã. O que faltou para o êxito da negociação?
Lula – É o tipo da coisa que somente o tempo vai se encarregar de mostrar o que aconteceu. Eu não tinha nenhuma relação de amizade com o (Mahmoud) Ahmadinejad. Conheci o Ahmadinejad numa reunião da ONU antes da minha ida a Pittsburgh para discutir o G-20. Tive uma conversa com ele. Discutimos duas horas e a primeira coisa que comecei a discutir era a respeito do Holocausto. Se era verdade ou não que ele não acreditava no Holocausto. E ele disse: “Não foi bem isso que eu quis dizer.” Se não foi bem isso que você quis dizer, então, diga. Porque em política todas as vezes que a gente começa a se explicar muito é porque a gente cometeu um erro. Ele disse: “É porque morreram 67 milhões de seres humanos na Segunda Guerra e parece que só morreram os judeus. Os judeus se fazem de vítimas.” Eu falei que se era isso que ele, Ahmadinejad, queria dizer então dissesse. Morreram 67 milhões de pessoas na Segunda Guerra, mas os judeus não morreram em guerra. Eles foram assassinados a sangue-frio, crianças, mulheres, em câmaras de gás, é diferente. Senti que tinha uma possibilidade de conversa. Ele pessoalmente é muito mais afável do que na televisão.

ISTOÉ – Como o sr. encaminhou a questão?
Lula – Eu cheguei na ONU, cheguei em Pittsburgh, tinham dado uma entrevista o Sarkozy (presidente da França, Nicolas Sarkozy), Gordon Brown (então primeiro-ministro britânico) e Barack Obama (presidente dos EUA) criticando Ahmadinejad. Fui no Obama e falei: “Companheiro, você já conversou com o Ahmadinejad alguma vez? Não. Você se dignou a pegar o telefone, ligar para ele e dizer: eu quero conversar com você? Não”. A mesma conversa eu tive com o Sarkozy, com o Gordon Brown e com a Angela Merkel (chanceler alemã). Ora, vocês nunca conversaram com o Ahmadinejad e estão dizendo que ele não quer sentar à mesa para negociar essa questão da paz. Então eu quero dizer para vocês o seguinte: eu acredito que ele quer sentar e eu estou convidando ele para ir ao Brasil, estou convidando o primeiro-ministro de Israel, estou convidando o Shimon Peres, estou convidando o presidente da Síria para ir ao Brasil. Separadamente, cada um na sua data. Ahmadinejad veio aqui. Nós conversamos mais de duas horas. Eu disse que, se fosse possível a gente avançar, eu mandaria o Celso Amorim ir muitas vezes lá. Como a Turquia também estava tentando, então o Celso Amorim e o ministro das Relações Exteriores da Turquia começaram a conversar com o primeiro-ministro do Irã, preparando a nossa ida lá. Em Copenhague, quase que eu consigo marcar um jantar entre Sarkozy e Ahmadinejad. Mas, como a rainha da Dinamarca não convidou o Ahmadinejad para o jantar, não deu. Chegou o dia de eu ir ao Irã e eu falei para o Celso que era preciso dizer para o Ahmadinejad que eu não poderia fazer uma viagem inútil.

“Não haverá solução no Oriente Médio enquanto os americanos
acharem que eles são os responsáveis pela construção da paz”

“Obama achou que eu e a Turquia estávamos sonhando
acreditando no Ahmadinejad, que ele iria enganar a
gente. Eu disse o seguinte: ‘Nasci político, meu filho’”

ISTOÉ – O sr. também havia recebido um pedido de Sarkozy para encaminhar ao Ahmadinejad.
Lula – Sarkozy tinha falado conosco da moça que estava presa, se poderia ter um gesto de liberar. Eu conversei com Ahmadinejad e ele se comprometeu a liberar, tanto é que eu cheguei à meia-noite lá e às cinco horas da manhã ele liberou. Duas semanas antes de eu viajar, recebo uma carta do Obama. E a carta do Obama tinha um viés. Primeiro tratando de uma forma carinhosa, se desculpando da grosseria dele quando nós fomos discutir o assunto nuclear lá. Ele achou que eu e a Turquia estávamos sonhando, acreditando no Ahmadinejad, que ele iria enganar a gente, não iria cumprir nada. Eu disse o seguinte: “Eu nasci político, meu filho. Toda a minha vida, desde 1969, foi negociar. Perdi muita coisa, ganhei muita coisa, mas negociar é a arte maior de fazer política. Então eu vou lá porque eu acredito.” Tanto é que quando eu cheguei na Rússia, na viagem para o Irã, Dmitri Medvedev (presidente russo) me disse: “Obama me ligou dizendo que ele acha que você vai ser enganado pelo Ahmadinejad.” Um jornalista perguntou: “Escuta aqui, de zero a seis, qual é o grau de otimismo que você tem para fazer a negociação?” O Medvedev falou 30%. Eu disse: Porra! Que otimismo pessimista! Eu falei 99,9%. Cheguei ao Qatar, o Obama tinha ligado para o emir dizendo que vão enganar o Lula. Cheguei ao Irã, conversamos, conversamos, conversamos. Fui conversar com o líder supremo, Khamenei. Duas horas de conversa. Depois fui conversar com o Ali Larijani (presidente do Parlamento) e com todos falei da importância, que eles não poderiam arriscar o bloqueio.

ISTOÉ – Por que, presidente?
Lula – Porque o bloqueio começa sem dor, mas daqui a pouco começa a faltar remédio, começa a faltar comida. E quem paga o preço são as crianças. Contei que Cuba viveu 50 anos, que a Líbia viveu 13 anos com bloqueio. Eu conversei tudo o que poderia conversar com eles. O Celso Amorim teve um papel extraordinário com os ministros. Chegou no outro dia às 9h da noite e nós fomos jantar. O Celso não estava no jantar e estava o ministro deles. Azedou, pensei. Esse aqui (o ministro Franklin Martins) estava muito pessimista. Na hora que eu saí do hotel, ele falou: “não vai dar nada”. E eu: “Calma, rapaz, tem que ter fé. A fé que move montanhas.” Eu cheguei lá, estava o ministro deles, mas não estava o Celso. Pensei que tinha azedado mesmo. Então disse para o Ahmadinejad: amanhã eu vou embora, sabe que para eu vir aqui eu larguei a minha mulher e os meus filhos, tenho tarefa pra caramba no Brasil. Vim aqui porque eu quero para você o que eu quero para mim. Eu quero que o Irã desenvolva o enriquecimento de urânio para fins pacíficos, para produzir coisas para a indústria farmacêutica, para produzir coisas para a energia nuclear e no meu país isso está na Constituição. E eu não quero que, por equívoco, o mundo rico, que tem bomba nuclear, te impeça de fazer isso. Então, na verdade eu vim aqui para dar as minhas costas para repartir as chibatadas que você está tomando e não gostaria de ir embora sem assinar esse acordo. Se eu for embora sem assinar esse acordo, eu vou ter que começar a fazer discurso dizendo que você não quer negociar mesmo.

ISTOÉ – Depois disso ele resolveu assinar?
Lula – Ele disse: Vamos conversar amanhã de manhã? O ministro dele estava comigo e ia encontrar o Celso ainda. O ministro dele disse assim para mim: “Presidente, falta só um ponto, eu vou encontrar com o Celso agora.” Quando foi meia-noite, eu cheguei ao hotel e o Celso me liga: “Presidente, fechamos.” Nós fomos para acertar o acordo. Tinha físico para dar palpite, como vocês nem imaginam. Os caras não queriam assumir compromisso com data. Eu disse que sem data nós não concordávamos. Eu falei: “Ahmadinejad, vocês sabem o que falam de você. Lá fora na Europa, nos Estados Unidos, falam que você não cumpre palavra, você sabe disso. Por isso é importante colocar a data dizendo que tal dia você vai mandar tal coisa”. Ele topou. Qual foi a minha surpresa, companheiros? É que o pessoal que estava há não sei quantos anos tentando conversar com o Ahmadinejad e nunca conversou, porque nunca tentou, ficou com ciúmes. Por isso a reação. Na minha opinião, essa é a única explicação para a ciumeira do Conselho de Segurança da ONU. Nós ainda mandamos para o grupo de Viena, com Rússia, Estados Unidos e França, a carta no domingo, e ainda assim eles tentaram barrar. Eu acho que a história vai mostrar o equívoco dos companheiros que resolveram trocar as conversas pelas sanções, porque demonstraram apenas ciúmes. Em minha opinião, uma atitude pequena. O problema é o seguinte: se a ONU continuar fraca do jeito que está, vai prevalecer o unilateralismo, a posição unilateral dos americanos vai continuar prevalecendo. Quando nós propusemos fortalecer a ONU, não queríamos só a entrada do Brasil. Mas a entrada do Brasil, da Índia, da Alemanha, de dois ou três países africanos.

ISTOÉ – Mas uma luta histórica do Brasil é pelo assento definitivo no Conselho de Segurança da ONU.
Lula – É para que tenha mais representatividade. Imagine o continente africano com 53 países que não tem ninguém. E quantos têm os europeus? E agora tem mais a Alemanha, convidada especial. O Conselho de Segurança da ONU não pode ser um clube de amigos, não pode ser tratado assim. Aquilo tem que ser uma instituição multilateral para resolver problema de conflitos. Em minha opinião, no Oriente Médio não haverá solução enquanto os americanos acharem que são eles os responsáveis pela construção da paz. Se a ONU fosse forte, resolveria o problema do Oriente Médio. Iria lá, demarcaria a terra dos palestinos, demarcaria a terra de Israel e faria cumprir, como fez em 1948, quando criou o Estado de Israel. Como ela é fraca, fica só lá, um dia vai um e ganha o Prêmio Nobel, outro dia vai outro e ganha o Prêmio Nobel, não faz nada, outro dia vai outro e outro prêmio. Então, eu acho que é uma estupidez política não reformar o Conselho de Segurança da ONU.



“Beijei cada um dos hansenianos, porque nunca um presidente
havia encostado neles, possivelmente de nojo”

“Há muitas coisas que me emocionam: de a gente teimar
que era possível receber num palácio de governo não apenas príncipe,
rainha ou presidente, mas do pé descalço ao cara que está de sapato alto”

ISTOÉ – Nesses oito anos, o sr. se arrepende de algo que não fez?
Lula – Talvez nesses cinco meses de reflexão que eu pedi para vocês, vá surgir muita coisa. Eu fiz uma proposta de política tributária que todo mundo dizia que precisava. Fiz uma em consenso com os governadores, com todos os empresários, com todos os dirigentes sindicais, com todos os lideres partidários e ela não foi aprovada. Mandei para o Congresso Nacional e não foi votada. Então tem um desgraçado de um inimigo oculto que está trancado em algum armário e não permite que se vote a reforma tributária.

ISTOÉ – Com qual legado o sr. quer ser lembrado daqui para a frente?
Lula – O mais importante é a relação que eu estabeleci com a sociedade. No meu governo, eu fiz 72 conferências nacionais, de tudo o que você possa imaginar. Todas as políticas públicas que nós colocamos em prática são resultado de milhares de pessoas participando nos municípios, nos Estados, até chegar aqui. Esse é o legado que nós vamos deixar, que nenhum presidente vai ter coragem de mudar. Há muitas coisas que me emocionam (fala com os olhos marejados). Foi um processo educativo. De a gente teimar que era possível provar o seguinte: o Palácio de um governo não é apenas para receber príncipe, rainha ou presidente. É para receber do pé descalço ao cara que está de sapato alto. Essa foi a coisa rica do governo. Os sem-teto entrando lá dentro e chorando. Os cegos também entraram. Aprovamos aposentadoria para hansenianos que ficaram mais de 30 anos em colônias. Beijei cada um, porque nunca um presidente havia encostado neles, possivelmente de nojo. Eu acho que esse é o legado. Todos os anos, eu me reuni com reitores, com prefeitos. Não houve segmento da sociedade que ficou de fora: foi do empresário mais rico ao cidadão mais pobre. Eu acho que esse é o grande legado que espero que seja um grande aprendizado para o nosso país. Deus queira que o Brasil continue andando desse jeito. Se continuar assim por mais seis, sete anos, nós seremos a quarta economia do mundo. O povo vai estar comendo mais e consumindo mais. Eu adoro quando vejo os jornais dizerem, às vezes em letrinhas pequenas lá embaixo no rodapé, que os pobres estão comendo mais e que o consumo aumentou, que a classe D está comprando mais. Eu acho tudo isso fantástico. Mas ainda falta muito para fazer.




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Contribuinte - Fiscal dos investimentos compulsórios no setor público.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

PERFIS - O Andarilho (FHC) por João Moreira Sales

http://www.revistapiaui.com.br/interna_print.aspx?id=187&nEdicao=11





JOÃO MOREIRA SALLES

Plim! Fernando Henrique Cardoso girou a cadeira e se aproximou do computador: "Vejamos se é algo importante". Não era. Ao término de sua temporada anual na Universidade Brown, no minúsculo estado de Rhode Island, ao norte de Nova York, as mensagens que chegavam pelo correio eletrônico eram todas meio sem graça: questões administrativas, pedidos de alunos para agendamentos de última hora. O ex-presidente pelejava por mudar o horário de seu vôo para Little Rock, a capital do Arkansas, onde teria de estar dentro de dois dias. Fernando Henrique se via às voltas com o mundo bizantino dos e-tickets e suas infinitas alternativas. "Estou mal acostumado, as pessoas tomam conta de mim. No Brasil, são praticamente babás", resignava-se, arrastando sem muita desenvoltura o mouse.

Era um tedioso dia de inverno, com largos intervalos de inatividade. Ainda assim, sua agenda indicava quatro compromissos: entrevista a um jornal da Flórida, duas conversas com alunos e jantar com o embaixador chinês nos Estados Unidos. FHC e os EUA não formam uma parceria ideal. A América, para ele, é como a madrinha excêntrica, que provê - convive-se com ela mais por necessidade que por gosto. Naquele dia, o ex-presidente se queixava dos hábitos alimentares de seus anfitriões: "Essa coisa de comer com as mãos, eu não sei fazer isso. E eles gostam de conversar enquanto comem sanduíche. Eu digo não: ou eu falo, ou eu como".

Às 11 em ponto, três pessoas entraram na sala. Não que soubesse do que se tratava. Seu modus operandi é simples: as pessoas ligam, ele marca e seja o que Deus quiser. Atende a todos com inegável paciência. "Sou professor at large, o que significa que posso fazer o que eu quiser". Ele se levantou abotoando o paletó azul-marinho. Havia trazido dois ternos para a temporada americana - o outro, de risca de giz -, comprados por 400 dólares cada na liquidação da loja de departamentos Sacks Fifth Avenue ("Ótimo negócio", congratulou-se). "É uma entrevista?", perguntou ao ver um gravador. A jornalista se apresentou: Jane Bussey, do Miami Herald. "Ela já ganhou um Pulitzer", acrescentou a moça que a acompanhava, meio a troco de nada. "Ah", FHC sorriu educadamente.

Durante a próxima meia hora, respondeu com entusiasmo a perguntas triviais, dando à jornalista a impressão de que suas perguntas eram melhores do que pareciam. Comunica-se com facilidade, apesar dos esbarrões no idioma. Ainda segue - e não abdicou de influenciar - a política no Brasil, mas longe do país suas preocupações são outras. América Latina, poder do sistema financeiro internacional e destino da democracia estão entre elas. Quando a jornalista chegou ao tema Hugo Chávez, FHC reagiu: "Vocês perguntam sobre a democracia na América Latina, mas a questão maior é o que acontecerá com a democracia americana. Marx e Tocqueville eram fascinados pela democracia de vocês, pela participação das pessoas na vida pública. Hoje estranhariam muito. Há uma grande mudança em curso. A força do sistema financeiro é tão grande, que acaba por transformar a essência do sistema. Como as corporações se integrarão a essa democracia?" Ele havia lido no Wall Street Journal daquele dia uma notícia que o impressionara: a tentativa de um grupo de investidores de tomar o controle acionário do New York Times das mãos da família Sulzberger, proprietária do jornal há mais de setenta anos. "É um perigo", reclamou com a jornalista, que já guardava o gravador e agradecia.

Em tempos de rebuliço político na América Latina, pedem-lhe cada vez mais que opine sobre Chávez. Lula deixou de ter graça nas universidades americanas. "Ele perdeu pontos quando decidiu ser sensato. A sensatez não apaixona. Lula não quebra, Chávez quebra. Esse pessoal de esquerda gosta dos nietzschianos. Lula é cartesiano - a seu modo, pelo menos. Está sempre do lado do senso comum."

Plim! "Vejamos", disse, virando-se de novo na cadeira. Era a confirmação de que o vôo para Little Rock havia sido remarcado. Percebeu que teria de acordar às 5 e meia da manhã, o que de imediato o fez voltar aos desencontros com os Estados Unidos. "Ainda bem que aqui eu durmo cedo", disse. "No clube em que fico hospedado, o jantar é servido das 17 às 20 horas. Mas me disseram que, se for muito necessário, podem fazer uma concessão." Permitem-lhe jantar depois das 8? "Não", esclarece com desalento. "Antes das 5."

Ao meio-dia, um rapaz apareceu na porta. De esguelha, FHC deu uma espiada na agenda. Daniel Ferrante, paulista, 30 anos, desde 2 000 nos Estados Unidos, doutor em física por Brown e agora aluno do pós-doutorado. Tinha hora marcada. "Como posso te ajudar?", perguntou o ex-presidente, indicando-lhe a mesa redonda. Ferrante se ajeitou na cadeira e, em voz baixa, disse: "Presidente, eu quero voltar. Então a minha pergunta é: existe um projeto de nação no Brasil?"

Fernando Henrique está instalado na sala 218 da Rhodes Suite, no Thomas J. Watson Jr. Institute for International Studies. É uma sala confortável e impessoal: bancada para o computador, mesa redonda para reuniões, duas fileiras de estantes repletas de journals de estudos latino-americanos, dezenas de exemplares do mesmo número. FHC guarda seus livros, não mais de vinte, na prateleira sobre o computador, ao alcance da mão. Uma grande janela dá para a rua. Brown significa honorários. "Quando deixei a presidência, fiquei assustado e me perguntei: como vou sobreviver?"

Alguns meses antes de terminar o segundo mandato, Fernando Henrique convidou um grupo de empresários para jantar no Alvorada, explicou-lhes que pensava criar uma fundação nos moldes das bibliotecas presidenciais americanas - conservaria ali toda a sua documentação presidencial e promoveria palestras e debates sobre o futuro do país - e pediu contribuições. Do encontro nasceu o Instituto Fernando Henrique Cardoso, com dotação inicial de 7 milhões de reais, sua base de operações no Brasil.

Fora do país, o ex-presidente firmou um contrato de cinco anos com a Universidade Brown. "Eles me pagam um dinheirão, 70 mil dólares por ano, com a obrigação de eu passar no mínimo quatro semanas aqui. Tirando os impostos, dá uns 5 mil por mês. Faz as contas, é muito bom. Antes recebi um convite de Harvard, não aceitei. Brown me pagava o dobro. A Ruth ficou indignada: 'Mas é Harvard!' Eu disse: 'Ruth, a essa altura do campeonato, eu não preciso de glórias. Preciso é de dinheiro'. Nem sabia que dava pra ganhar esse dinheirão todo com uma palestra só. Fiquei cliente do Harry Walker, o mesmo agente do Clinton. Em média, me oferecem 40 mil dólares; ele fica com 20%. Minha vantagem é que eu me viro em quatro línguas, três delas muito bem. Em Praga, uma vez, como nós éramos um grupo de palestrantes, não cheguei a falar nem vinte minutos - pagaram 60 mil dólares. O Clinton chega a ganhar 150 mil."

Fernando Henrique está à vontade no mundo. Itamar Franco não se deu bem em Roma e voltou para Juiz de Fora. José Sarney foi até o Amapá para poder retornar ao Senado. Collor passou anos em Miami, voltou a Maceió e agora está de novo em Brasília. Com FHC, há sempre a suspeita de que suas afinidades eletivas estejam mais ligadas a Paris ou Madri que a São Paulo ou Goiânia. Fora do país, ele tem prestígio em círculos acadêmicos e entre ex-governantes. No Brasil, tem influência, mas não poder. Segundo ele, o poder se mede pela quantidade de votos futuros e, por essa conta, seu cacife é nenhum. "Meu tempo passou. Queriam que eu concorresse ao governo de São Paulo. Eu disse: aí eu ganho e no dia seguinte tem rebelião em presídio e prefeito querendo encontro. O Senado é igual. Aquela convivência é muito desinteressante. Chega." Fala com convicção, parece sincero: depois de trocar idéias com Chirac e Clinton, deve ser meio desanimadora a perspectiva de puxar conversa com Epitácio Cafeteira.

Por que, então, não se estabelecer no exterior? "Ainda me interesso pelo Brasil. É uma espécie de disciplina intelectual. Vivo bem em qualquer lugar, mas essa coisa de ser brasileiro é quase uma obrigação." A palavra é forte. Significa, na lógica de FHC, comprometer-se com um país que continuará a ser medíocre: "Que ninguém se engane: o Brasil é isso mesmo que está aí. A saúde melhorou, a educação também e aos poucos a infra-estrutura se acertará. Mas não vai haver espetáculo do crescimento algum, nada que se compare à Índia ou à China. Continuaremos nessa falta de entusiasmo, nesse desânimo".

"Qual é a tua área?", pergunta a Daniel Ferrante. "Física teórica, partículas elementares, altas energias..." "Mas isso está muito fora de moda!", interrompe-o o ex-presidente: "Houve um avanço tremendo no campo da física de partículas, mas faz tempo". Imediatamente dá meia-volta: "Eu entendo nada de física, mas fui vizinho do Mario Schenberg". Se a conversa fosse um jogo de xadrez, esse primeiro lance levaria o nome de abertura FHC: primeiro movimento, impressionar o interlocutor; segundo movimento, desarmar-se em seguida, quando a primeira impressão já está sedimentada. Ferrante sorriu: "É verdade, no momento a minha a área não é a mais popular". O ex-presidente se acomodou na cadeira e passou a responder. Falou sem nenhuma pompa. (Ferrante descreveria o encontro como uma "conversa de cozinha" que lhe trouxe "a sensação de paz interior".)

"Um projeto de nação...", FHC começou. "A pergunta pressupõe que exista um centro decisório, alguém que planeja. Não há mais. O Brasil é um dos últimos países a ter Ministério do Planejamento; na América Latina, acabaram todos. É um dos efeitos do neoliberalismo. Dito isso, acho que tem lugar para você lá. Agora, você vai ganhar pouco..."

Não é o que inquieta Ferrante: "Emprego eu consigo", diz o rapaz. "O senhor me perdoa, mas existe o projeto da UniLula, em São Bernardo, eu podia ir pra lá. E sei que vou ganhar pouco. Minha pergunta é outra: existe curiosidade no Brasil? Existe desejo de ciência?" Ele hesita antes de completar: "É que eu sinto essa obrigação de devolver. Minha idéia é criar um fórum de discussão na internet, uma rede de divulgação científica para a comunidade lusófona. Quero tornar o conhecimento acessível a mais gente. É possível, ou eu vou morrer na praia?"

"Não precisa morrer na praia, não. Mas repito: falta centro." Fernando Henrique se aproxima de um dos temas que mais o têm ocupado, o da desintegração nacional: "Quais são as instituições que dão coesão a uma sociedade? Família, religião, partidos, escola. No Brasil, tudo isso fracassou. Na América Latina, em certos lugares, 50% das crianças não têm pai, a família se dissolveu. A religião preponderante é a católica, que vive uma crise danada depois que decidiu se lançar na política. As igrejas pentecostais são a própria expressão da fragmentação. Os partidos fracassaram. O último deles foi o PT, que cumpria um papel importante como aglutinador de entusiasmo. No meu governo, universalizamos o acesso à escola, mas pra quê? O que se ensina ali é um desastre. A única coisa que organiza o Brasil hoje é o mercado, e isso é dramático. O neoliberalismo venceu. Ao contrário do que pensam, contra a minha vontade".

Meses antes, o ex-presidente já abordara o tema: "Em que momento nos sentimos uma coisa só, uma nação? Talvez só no futebol. O Carnaval é uma celebração. A parada de 7 de Setembro é uma palhaçada. Quem se sente irmanado no Brasil? O Exército, e talvez só ele. Os americanos têm os seus founding fathers. Pode ser uma bobagem, mas organiza a sociedade. A França tem os ideais da Revolução. O Brasil não tem nada. Eu disse para os homens de imaginação, para o Nizan Guanaes: olha, a imaginação do povo é igual à estrutura do mito do Lévi-Strauss, ou seja, é binária: existem o bem e o mal. Eu fui eleito presidente da República porque fiz o bem - no caso, o real. O real já está aí, eu disse. Chega uma hora em que a força dele acaba. O que vamos oferecer no lugar? Ninguém soube me dar essa resposta. Eu também não soube encontrá-la". E, oscilando entre Lévi-Strauss e Nizan Guanaes, Fernando Henrique encerrou o assunto.

Daniel Ferrante agradeceu a conversa, embora tivesse saído da sala sem uma resposta clara. Meses depois, cumprindo seu plano original, estendeu a temporada nos Estados Unidos por mais um ano. Ainda não sabe quando volta para o Brasil e o que o espera aqui.

Providence, uma cidade pequena, ostenta como sua maior façanha gastronômica o recorde de lojas de donuts dos Estados Unidos. Fernando Henrique costuma almoçar nas ruas adjacentes ao campus. Ao sair do Watson Institute, caminha dois quarteirões e entra no restaurante Spice, tailandês. O cardápio traz fotografias dos pratos, todos a menos de 10 dólares. "Aqui pelo menos eu como um arrozinho com frango que lembra um pouco a comida do Brasil", disse ao pedir.

Fernando Collor fizera dias antes seu primeiro discurso no Senado. Durante mais de três horas, comparara seu calvário ao de D. Pedro I, D. Pedro II, Getúlio Vargas e João Goulart, classificando de "grande farsa" o processo que o tirara da Presidência. Os parlamentares, quase sem exceção, se solidarizaram com o senador, Tasso Jereissati entre eles. A reação impressionou Fernando Henrique. "Li que o Collor sequer pagou os impostos sobre as sobras de campanha. Embolsou e pronto. Como pode? O pessoal do meu partido diz que o que ele fez é menos grave que os escândalos do PT. E isso lá é desculpa? O problema do Brasil não é nem o esfacelamento do Estado. É algo anterior: é a falta de cultura cívica. De respeito à lei. Sem isso, como fazer uma nação?", pergunta, acabrunhado.

FHC volta a pé pelas alamedas do campus. Cruza com Richard Snyder, professor de sociologia. Snyder pergunta se no dia seguinte ele poderia conversar com seus alunos. "Qual o assunto?", quis saber o ex-presidente. "Liderança na América Latina. A sua experiência", responde o professor. "Ah! Se é pra falar de mim mesmo, então é fácil." E com um sorriso: "É uma das coisas que mais gosto de fazer".

Uma aluna o aguardava na porta da sala 218. FHC, como de hábito, não sabia do que se tratava. A garota, estudante de relações internacionais, havia marcado uma entrevista para o jornalzinho da faculdade e trazia um exemplar de The Accidental President of Brazil, as memórias de FHC, cheia de post-its espetados. O autor sorriu, garboso. As perguntas, quase colegiais - Por que o senhor publicou este livro? Qual foi a reação do público? O senhor escreve como ex-presidente ou como sociólogo? -, novamente receberam respostas elaboradas. A cada uma delas, a garota exclamava "Oh, thank you!" Ao explicar a recepção do público à obra, FHC não resistiu: "Na Amazon, os leitores avaliam os livros por um sistema de estrelinhas. My book is full of stars". "Oh, thank you!"

Presidencial, de terno escuro e sobretudo azul-marinho pesado, às 2 da tarde do dia seguinte Fernando Henrique atravessa o campus ao lado do professor Snyder. Tem as mãos enfiadas nos bolsos. "Odeio frio", murmura. Faz 4 graus. Logo antes de alcançarem o prédio, Snyder informa: "O curso se chama Desenvolvimento, mercados e estados". Lutando com os cabelos que uma rajada de vento tornara selvagens, FHC comenta: "Mercados e estados? É um diálogo de surdos". Na sala de aula, apertada, há cerca de cem estudantes. Um deles veio cochichar no ouvido do professor: "A gente vai ter que sair mais cedo pra protestar contra a presença do embaixador chinês". Snyder suspira. Leva o convidado até uma cadeira espremida entre a primeira fila e o quadro-negro, pede silêncio e faz uma breve apresentação do palestrante, "um dos grandes teóricos do desenvolvimento". FHC se levanta.

Abertura FHC II, a estratégia da auto-esculhambação: "Quero corrigir o professor de vocês. Não é verdade que estudo a questão do desenvolvimento há quarenta anos. Estudo há cinqüenta". Funciona, em parte. Ouvem-se risadinhas. Toca um celular, alguém boceja, uma menina abre o caderno e, de caneta em punho, se prepara para anotar.

FHC fará uma recapitulação do conceito de desenvolvimento, da década de 60 até o presente. "Nosso trabalho era uma crítica ao capitalismo. Falávamos em dependência, em subdesenvolvimento, nunca em países 'em desenvolvimento', porque os países centrais não desejavam o desenvolvimento dos periféricos." Didaticamente, explicita a pergunta que dominou sua carreira de sociólogo: "Como se desenvolver nesse quadro?" Os modelos da época vislumbravam uma só alternativa: ruptura e revolução. Explica que sua contribuição foi "introduzir complexidade" na teoria. Países de economia mais diversificada, como o Brasil, seriam capazes de se desenvolver com capitais externos. A posição teórica de Fernando Henrique afastou-o da opção revolucionária. O livro que escreveu com o sociólogo chileno Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina, até hoje sua obra mais importante, abriu caminho para uma reforma do sistema, dentro do sistema. Sessenta minutos depois, usará na conclusão o que lhe restou do marxismo: "É preciso ter consciência de que todos os processos são históricos e, portanto, passíveis de mudanças. Ao mesmo tempo, é preciso saber que as estruturas são resistentes e limitam as alternativas. Quando mudei da academia para a política, sabia o que podia ou não fazer. Não sei se isso é bom. Conhecer de antemão as conseqüências e as limitações pode ser frustrante". Certamente, não permite pensar o impensável, ou, para usar um termo dele, não permite "quebrar". "A lucidez é um estorvo", declarou.

O grupo de alunos que vai protestar deixa a sala. Os que ficam fazem perguntas. Uma menina levanta a mão: "Qual a diferença entre ser ministro da Fazenda e presidente?" Ele não hesita: "O Brasil não tem guerras, não tem inimigos. É uma beleza ser chanceler. Nosso adversário era a inflação, e foi onde me jogaram, na Fazenda: é o pior emprego do mundo".

No final da aula, já fora do prédio, cinco alunos o rodeiam. Apesar do frio, um rapaz ruivo e sardento está de sandália de dedo, camisa havaiana e uma toalha molhada em torno do pescoço. FHC, tentando domar os cabelos, se vira à esquerda e à direita para atender à diminuta platéia. Não podia estar mais feliz. "Eles gostam muito disso", comenta minutos depois, a caminho da palestra do embaixador chinês. Para entrar no auditório, é preciso atravessar um corredor polonês de jovens que protestam. Entregam-lhe um panfleto que proclama: "Genocídio em Darfur - A China é cúmplice". Ele sorri: "Como eu ia dizendo, é bom ser brasileiro: ninguém dá bola".

No pequeno e tumultuado aeroporto de Providence, a fila no balcão da US Air se espichava em ziguezague até o meio do saguão. Passava um pouco das 7 da manhã. De terno, carregando na mão uma pasta e o sobretudo, o ex-presidente ia empurrando uma mala espantosamente vermelha. "As malas têm de ser berrantes, senão levam a sua sem querer." Seu bilhete para Little Rock, com escala em Chicago, estava marcado para as 8 horas e 24 minutos. Quinze minutos depois, a fila não avançara um passo. FHC decide assuntar.

Descobrindo que o vôo seria operado pela Delta Airlines, cruzou o saguão até o balcão da companhia. Não havia filas. Entregou o passaporte e a passagem e pôs a mala na balança: 28 quilos, oito a mais do que lhe dava direito a classe econômica. Vem a conta: 50 dólares. "Expensive, no?" Abre a carteira. Na esperança de um desconto, tenta passar uma conversa: "Estou aqui há um mês, sou professor, são meus livros..." Nada. Paga resmungando e, a pedido da funcionária, arrasta a mala até a esteira dos raios X. Na fila da segurança, tira os sapatos, põe o casaco na bandeja, os sapatos, a pasta. "Não, não tenho laptop", responde ao agente. Passou pelo detector de metais, recuperou os sapatos, sentou-se para calçá-los. Não há porte presidencial que resista.

"Eu podia pedir o acompanhamento do Secret Service" - privilégio pessoal, não necessariamente extensivo a todos os ex-chefes de Estado -, "o que evita essas filas, isso de tirar o sapato, mas aí os americanos sabem que estou aqui e vira uma chatice. Sou obrigado a ir a recepção, a jantar. Prefiro sozinho. Além do mais, não acho que minha honra ou a do Brasil caiam por terra abaixo quando tiro os sapatos..." Como não havia tido tempo de tomar café e o painel avisava que o vôo atrasaria, FHC entra numa lanchonete T.G.I Friday's. Corre os olhos pelo cardápio gorduroso e, desanimado, encomenda um misto quente. Entre goles de um café hediondo, relembra alguns dos homens que conheceu no poder.

"Tenho horror ao Bush, horror pessoal." Tiveram o primeiro encontro na Casa Branca. "O Bush se gabou de que seria conhecido como o maior poluidor do planeta. 'Vou abrir o Alasca para o petróleo. Podem reclamar, mas o mundo precisa que os Estados Unidos sejam fortes.' O incrível é que ainda assim consegue ser um homem simpático, desses que dão soquinho no ombro da gente. Mas não sabe nada. Uma hora, falei da nossa diversidade racial, os espanhóis, portugueses, japoneses... Ele perguntou: 'And do you have blacks?' A Condoleezza deu um pulo: 'Senhor presidente, o Brasil tem a maior população de negros fora da África!' Ele não sabe nada", recorda com desapreço.

Bill Clinton, Nelson Mandela e Felipe González são os três líderes que FHC mais admira. "O González e o Clinton são assim: quando entram na sala, todos se viram. São naturalmente maiores. Agora, o Mandela é a força moral. Até o Clinton se sente humilde quando se aproxima dele." Com Chirac, se dá muito bem. São ambos hedonistas, antipuritanos. Putin é outra coisa, um obcecado pela força: "Vai reconstruir a Rússia. É um autocrata que foi subestimado no início. Eu teria medo do Putin".

O avião decola com uma hora de atraso. FHC tenta cochilar, mas está num assento de corredor e é acordado duas vezes - a primeira, pelo passageiro da janela; a segunda, pelo do meio.

Com 76 milhões de passageiros por ano, o Aeroporto O'Hare, em Chicago, é o mais movimentado dos Estados Unidos. Ao desembarcar no terminal A, Fernando Henrique é informado de que a conexão para Little Rock partirá do terminal C, dali a dezoito minutos. Para ir de um a outro, cruza-se por salões e corredores abarrotados. Tomam-se passagens subterrâneas. Escadas rolantes. Esteiras. Alças de conexão. Há gente por todo lado - dormindo, comendo, comprando, correndo, bocejando, gritando, espirrando, digitando. "Que venha a depressão", murmura Fernando Henrique, olhando o relógio e apertando o passo.

A placa indica que é por ali. Depois, que é por ali. Logo adiante, aparecem duas setas - em desacordo. Entra-se por um corredor, volta-se atrás. Às 11 horas e 27 minutos, o ex-presidente alcança enfim o portão C-18. Aproxima-se num quase trote, braço esticado, passagem e passaporte à mão. A funcionária balança a cabeça. O vôo das 11 horas e 25 minutos fora encerrado havia alguns minutos. Fernando Henrique olha pelo vidro. O avião está ali, à vista, inatingível. "E a minha mala, que foi etiquetada para esse vôo?", pergunta serenamente. "Deve seguir no próximo avião para Little Rock", responde a funcionária, sem tirar os olhos dos cartões de embarque dos que não perderam o vôo. "E quando sai o próximo?", continua o ex-presidente, imune ao desinteresse da moça. Com um suspiro eloqüente, ela deixa os cartões de lado e analisa o monitor: "Dentro de três horas. Mas é preciso ver se não está lotado".

Na melhor das hipóteses, ele chegará para a palestra com folga de apenas uma hora e meia. Saca um celular da pasta - é a primeira e última vez que será visto com o aparelho nas próximas duas semanas - e tenta falar com Brown, para que o ajudem a avisar seus anfitriões sobre a conexão perdida. O telefone não funciona (ou ele não sabe operá-lo). Desiste, mas consegue remanejar a passagem. Como Inês é morta, decide investigar o cardápio de um restaurante italiano que descobre entre dois portões. Escolhe, e come sem pestanejar, um duvidoso fettuccine Alfredo, acompanhado de Coca light.

Serão quase duas horas de Chicago a Little Rock. Apertado num avião regional fabricado por canadenses - "canadenses miudinhos", segundo a comissária de bordo -, Fernando Henrique retoma a narrativa de seu trajeto político e intelectual. Ele pertence a uma geração que teve a ambição de mudar a história. Ao chegar ao poder, constatou que as possibilidades de transformação eram limitadas; acertadamente ou não, julgou que inexistiam alternativas. Levou adiante seu projeto de governo com convicção pragmática, mas sem adesão ideológica - é o que se infere. "Fiz o que fiz faute de mieux", afirma. "Lamento não ter podido contar com melhores instrumentos. Imagine, eu ser confundido com a idéia de Estado mínimo..."

Esse é seu drama. Quando está entre alunos e professores, gasta boa parte do tempo defendendo-se da tese de que sua agenda e seu legado pertencem ao ideário neoliberal. É enfático: "Acontece que nunca fui um idealista, no sentido de utópico. Sou um realista, sei até onde é possível ir. Há um momento em que a realidade se impõe. Sou um pragmático, no sentido americano. Diante do Estado inepto e da prevalência da burguesia estatal, privatizar era o jeito". Tenta explicar: "Batizaram de Consenso de Washington a constatação de que o Estado estava falido e de que não se pode gastar o que não se tem; se tivessem batizado de Consenso de La Paz, não teria havido problema".

Por trás da retórica do pragmatismo, detecta-se uma lassidão. No 18 Brumário - um dos três livros que FHC recomenda ao leitor no prefácio das suas memórias -, Marx fala em "verdades sem paixões" e "história sem acontecimento". O sentimento é semelhante.

O avião estava prestes a aterrissar em Little Rock. FHC espiou pela janela "Parece o Mato Grosso...", disse, com um muxoxo. No desembarque, esperavam-no dois funcionários da Biblioteca e a argelina Danielle Ardaillon, sua assistente por anos, uma mulher bonita, de rosto anguloso, que viera a Little Rock apenas para a ocasião. Há um outro brasileiro na chegada. Também estava viajando há mais de dez horas. Reparava agora, aflito, que às 5 da manhã, zonzo de sono, vestira paletó e calça de ternos diferentes e que não daria tempo de passar no hotel para trocar de roupa. "Sem problema", tranqüilizou-o Fernando Henrique, "do Brasil eles esperam tudo."

Com 200 mil habitantes, Little Rock seria desconhecida até dos americanos se não tivesse servido de trampolim para Bill Clinton, que está para a cidade como a torre Eiffel está para Paris. Na Clinton Avenue, pode-se entrar na Clinton Store e comprar bonecos Clinton que tocam sax, pequenos Clintons falantes (21 frases memoráveis do ex-presidente), camisetas e gravatas com seu rosto, livros de culinária com suas receitas prediletas. Ainda que o Arkansas seja a sede da Wal-Mart, a maior rede de varejo do mundo, Clinton é uma indústria de peso para o estado. O William J. Clinton Presidential Center domina a cidade. Inaugurado em 2004 a um custo de 165 milhões de dólares, reúne a biblioteca presidencial, escritórios administrativos e a Clinton School of Public Service, que oferece o único mestrado em serviço público do país.

A agenda de FHC lembra as excursões que fazem doze países em sete dias. Cada hora é minuciosamente ocupada. Das 16 horas e 30 minutos às 17 horas e 30 minutos, levam-no a uma recepção no amplo apartamento pessoal de Clinton, no último andar da biblioteca, com vista infinita para a cidade, o rio e a planície. Clinton não está presente. Há políticos e empresários locais, gente da sociedade. Umas cem pessoas se espalham pelos cômodos. Todas sorriem institucionalmente. Um pianista negro tocando Garota de Ipanema. Em estantes repletas de livros meticulosamente arrumados, nota-se um ecletismo incapaz de refletir os interesses de um só leitor: madre Teresa de Calcutá ao lado de Naipaul, Edna O'Brien junto a tratados sobre protestantismo americano. A idéia de vigor e juventude, tão cara à imagem rock'n'roll que Clinton fez questão de projetar, se traduz em quadros de inspiração expressionista cujo tema quase invariável é o ex-presidente e seu sax; certos traços, elétricos, parecem ter sido feitos por um gato que, sem sucesso, tentou se agarrar à tela. Fernando Henrique é levado ao quarto dos Clinton: visita o guarda-roupa deles, o banheiro. Com rigor prussiano, o apartamento se esvazia às 17 horas e 25 minutos.

Os próximos quinze minutos determinam uma visita à biblioteca presidencial. O anfitrião é Mack McLarty, um homem de 61 anos, baixo, impecavelmente educado e mãos muito pequenas. Amigo de infância de Clinton, foi chefe de sua Casa Civil. O roteiro é compacto: réplica em tamanho natural do Salão Oval, arquivos com a documentação presidencial e, por fim, num golpe de coreografia perfeita, um grande painel intitulado Comunidade Global, com imensas fotografias dos doze líderes de que Bill Clinton se sentiu mais próximo. Entre eles, dois ex-presos políticos (o checo Vaclav Havel e o sul-africano Nelson Mandela), um ditador (o chinês Jian Zemin), um rei (Hussein, da Jordânia, que contribuiu para a construção da biblioteca) e Fernando Henrique, que sorri, envaidecido.

Das 17 horas e 45 minutos às 18 horas, descanso. FHC é levado a um quartinho com duas poltronas e um sofá curto. Tira a almofada da poltrona, ajeita-a na cabeceira do sofá, deita-se. Vira de lado e encolhe as pernas - a posição fetal é a única viável. Pede que apaguem a luz.

Às 18 horas e 10 minutos, McLarty apresenta "o mais bem-sucedido presidente da história do Brasil". Da soleira do grande salão, o homenageado ouve as palavras que costumam acompanhar discursos sobre o país: "Amazônia", "Garota de Ipanema" e, novidade recente, "etanol". Na platéia, aguardam-no cerca de 300 pessoas, entre as quais o prefeito, o vice-governador, empresários e senhoras da sociedade local, além dos 21 alunos da Clinton School. O convidado está cansado, pede desculpas - gostaria de falar de improviso, mas estava viajando havia quase treze horas. Começa a ler sua palestra, "Desafio à democracia na América Latina". Falta ao Brasil "a convicção profunda de que a lei conta", dirá. Uma hora depois, encerra a conferência com um floreio retórico: "Hoje, só o mercado produz coesão. Mas o mercado é bom para produzir lucros, não valores".

É aplaudido de pé, e pelos vinte minutos seguintes autografará uma pilha de The Accidental President of Brazil, além de posar para dezenas de fotos de celular. Sorri em todas, mas desiste de arrumar o cabelo, que a essa altura adquiriu vida própria. Consulta a agenda numa brecha: das 19 horas e 30 minutos às 21 hora, jantar na casa de McLarty.

Às 21 horas e 30 minutos, quinze horas depois de sair do seu quarto em Providence, FHC é deixado na porta do hotel. Faz seu próprio check-in.

Às 8 horas e 45 minutos, estava a postos para o vôo Delta com destino a Atlanta, com conexão às 15 horas para Raleigh Durham, na Carolina do Norte. Desta vez, bilhete de executiva. O avião pousou às 11 horas em Atlanta, sem atrasos, o que significaria quatro horas de espera. Fernando Henrique buscou uma área tranqüila para rever seus papéis e fazer emendas na conferência programada para dali a dois dias, na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Sentou-se ao lado de uma senhora que folheava a revista People e chupava um picolé. Meia hora depois atinou que, se era executiva, então dava direito a sala VIP. "E eu sofrendo no meio do povo à toa", deduz, recolhendo seus papéis à pasta.

Às 13 horas e 30 minutos, sai em busca de um restaurante, sempre espantado com a quantidade de gente, com a obesidade generalizada, com o excesso de tudo. Ao avistar dois assentos vazios no balcão de um bar, instala-se antes que sejam ocupados. Acima de sua cabeça, há três TVs ligadas em três canais diferentes, um deles de rap. "Este é um país muito barulhento", constata, quase gritando para ser ouvido. Sua salada Caesar lhe chega direto da geladeira, envolta em celofane. Ele ajuda com Coca light.

Anima-se com o compromisso em Chapel Hill, onde estará em um de seus ambientes naturais. Suas reminiscências se dividem entre a vida acadêmica - que trata com seriedade - e a vida política - de que gosta, embora tente disfarçar com doses de ironia.

"O melhor professor que tive no Brasil foi o Antonio Candido. As aulas, impecáveis, começavam e terminavam no horário, sem um minuto a mais ou a menos. Um raciocínio límpido, extraordinário. Candido é meu amigo, a ligação dele com o PT jamais foi um entrave. Nunca tive problemas com pessoas que discordaram de mim politicamente. Roberto Schwarz é meu amigo, esteve em casa outro dia mesmo. Agora, quando a divergência escorrega para o terreno pessoal, aí eu me desaponto. Quando dizem que fiz isso ou aquilo em busca de vantagem pessoal, acho imperdoável. Foi por isso que acabei me afastando de dois amigos - e só de dois: o Chico de Oliveira e a Maria da Conceição Tavares", disse, referindo-se ao sociólogo que foi seu colega no Cebrap e à economista filiada ao PT.

FHC sai em defesa de seu sucessor quando o tema são ataques pessoais. "Não acredito que Lula tenha práticas de enriquecimento pessoal", diz. "O que há é que ele é um pouco leniente. O partido ajuda daqui, ajuda dali e ele vai deixando, acha que é normal. No fundo, não há nada de muito grave nisso. Mas era melhor dizer: fulano me ajudou a comprar o apartamento, o partido me deu tal dinheiro. Lula não pensa em dinheiro. Ele gosta do poder, e gosta da vida boa." É semelhante sua opinião sobre José Genoino e José Dirceu: "Genoino não é desonesto, Dirceu também não. Dirceu é outra coisa..." Sorri. Espera o raciocínio se completar: "Dirceu é o Putin que fracassou".

Dentre amigos e colaboradores, é imensa a admiração intelectual por Pérsio Arida e André Lara Resende. Lamenta que tenham se retirado da vida pública e deixado de produzir: "Não deviam ter parado tão cedo. É que existe essa mania de ganhar dinheiro. Ganharam, e agora não sabem o que fazer. Eu digo: 'André, você não pode ficar assim, volta a trabalhar'. Ele fica lá com o aviãozinho dele, pra cima e pra baixo. É uma loucura", diz, enquanto fecha a conta. Não guarda canhotos de cartão de crédito. "Ruth guarda todos. Eu não, sou muito desorganizado", gesto de quem não liga para dinheiro ou privilégio de quem não precisa mais se preocupar com essas coisas.

Se há um político brasileiro de quem Fernando Henrique não gosta é Delfim Netto. Em seu cauteloso livro de memórias, A Arte da Política, trata praticamente todos os personagens com luvas de pelica. Delfim é a exceção. "Não gosto mesmo", reitera. "Ele atrapalhou muito o real, mas isso não é o mais importante. Um brigadeiro me trouxe um documento, nem sei se isso mais tarde se tornou público. Era uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, Costa e Silva presidente. A questão era cassar ou não o Covas. O ministro da Marinha, Rademaker, era um duro, defendia a cassação. Costa e Silva, que no fundo era um bonachão, contemporizava: 'Por que não cassamos sem tirar os direitos políticos?' Rademaker argumentava que não ia adiantar, ele se reelegeria. Havia um impasse. Foi quando se manifestou o ministro da Fazenda, o Delfim: 'Esse eu conheço, é de Santos, um comunista'. Aí acabou: cassaram. Delfim mentiu. Covas nunca foi comunista, não era sequer ligado à esquerda. Era um janista, um conservador. Tenho horror ao Delfim."

Delfim Netto nega a história com veemência. Afirma que não se faziam atas de processos de cassação e que chegou a ajudar Covas a arrumar emprego depois da cassação. "Que o Fernando apareça com a ata", desafia, "ou vai passar por mentiroso."

O presidente está hospedado numa residência que pertence à Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, a mais antiga instituição pública de ensino superior dos Estados Unidos. As instalações são estupendas. Chão de tábua corrida, solenes sofás de couro, poltronas de espaldar alto, mesas de jacarandá, retratos a óleo de personagens históricos, cenas de caça e uma mesa de bilhar de pano vermelho. O quarto de Fernando Henrique tem cama com baldaquino.

Às 11 da manhã ele aparece no salão, de jeans. Junto à lareira, com uma equipe amadora de filmagem, espera-o o professor de sociologia Arturo Escobar. Ao se dar conta de que a entrevista será gravada, FHC declara: "Estos pantalones non son presidenciales". Vai até o quarto e volta de blazer e gravata. As perguntas, bem elaboradas, retomam concepções que desenvolveu há décadas. Como de hábito, ele se vê desafiado a defender a continuidade entre suas idéias como sociólogo e as que implementou como presidente. O neoliberalismo é uma espécie de assombração que ele se vê forçado a exorcizar a cada entrevista.

"O que houve não foi uma ruptura epistemológica no meu trajeto intelectual, mas uma ruptura ontológica no mundo", afirma. "No final da década de 80, não estávamos mais enfrentando teorias, mas realidade. Olhamos o que existia e estava tudo aos pedaços. Estávamos falidos. Fomos forçados a privatizar, não havia outro jeito. Mesmo assim, não privatizei tudo - porque não era necessário. Acredito no papel do Estado." Para Fernando Henrique, seu verdadeiro legado acadêmico é de ordem metodológica e não ideológica. Foi uma lição que aprendeu com Florestan Fernandes: "Colete todos os dados, compreenda todos os pontos de vista", ensinava Florestan. "Minha mente não é tomista, estou sempre ligado à realidade, nunca me orientei por abstrações."

Reage à idéia de que a América Latina estaria se voltando para a esquerda: "Não é esquerda, é populismo: o líder falando diretamente com as massas, sem o intermédio das instituições". Esse é um ponto crucial. Se Chávez é percebido como progressista, imediatamente FHC se torna um conservador, rótulo do qual tenta se livrar a todo custo. Repetirá inúmeras vezes que o populismo é autoritário e regressivo. "Esquerda clássica é o Allende, esse sim queria romper com o sistema capitalista. Chávez opera no nível ideológico. Na prática, ele vende para os americanos e a burguesia venezuelana está ganhando dinheiro", argumenta.

Antes de almoçar, volta ao quarto para repassar a programação. Entre aulas, almoços, palestras, conversas com alunos e jantares, a agenda prevê um compromisso a cada duas horas. Receberá honorários? "Acho que sim. Essas coisas eles não conversam comigo, mas vou perguntar lá no Brasil, porque do jeito que estão me fazendo trabalhar, tomara que o dinheiro seja bom." Torce para que chegue a 10 mil dólares, no mínimo.

Depois de três dias à base de lanchonetes de aeroporto, Fernando Henrique senta-se feliz à mesa de um restaurante de verdade. Como é domingo, o que encontra é um brunch. Desconfiado, investiga o conteúdo de salvas de prata e rescaldeiros. Pega um prato e se serve, não sem antes consultar o cartãozinho diante de cada iguaria. Evita combinações menos ortodoxas. Ao redor, pessoas misturam costeletas de carneiro com panquecas, salmão com rabanada. "A Ruth sempre diz que os Estados Unidos precisavam ler Lévi-Strauss. O cru e o cozido, o doce e o amargo, esses contrastes. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eles misturam tudo", diz, apontando um prato vizinho com indícios de peixe e melancia.

Ele come lentamente. Fala das diferenças entre os dois grandes nomes de seu partido e, certo de que seu tempo ficou para trás, não precisa mais sopesar cada palavra. "Sou mesmo a única oposição, mas estou me lixando para o que o Lula faz. O problema é a continuidade do que foi feito. Serra quer ser presidente e então vai àquele encontro dos governadores em que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi posta em xeque. De concessão em concessão, a vaca vai pro brejo. Serra não disse nada porque vai se beneficiar com isso. Ele seria um bom presidente. Quebra lanças. Aécio é mais conservador, acomoda mais. Isso dito, politicamente Aécio é fortíssimo. Pode ser menos preparado que o Serra, mas é popularíssimo. Não precisa provar mais nada. Serra precisa. O governo dele em São Paulo é que decidirá, e o início não foi brilhante. Agora, o Aécio gosta demais da vida privada dele. Pode parecer banal, mas é assim que as coisas funcionam. Com a presidência, muda tudo. Como ele não poderia mais ter a liberdade de que goza hoje, prefere pensar que tem tempo pela frente."

Fernando Henrique atravessa o campus em direção ao clube, onde descansará até o próximo compromisso. Gosta de conversar enquanto caminha a passos lentos, as mãos trançadas nas costas: "Sou cartesiano com um pouco de candomblé. Porque, no Brasil, sendo só cartesiano não se vai longe. Já o Lula é o Macunaíma, o brasileiro sem caráter, que se acomoda". A frase não soa pejorativa nem parece comportar um juízo moral. Para ele, Lula é aquele que se amolda, que nunca bate pé ou explicita suas posições. Um camaleão.

FHC é capaz de elogiar adversários históricos e criticar aliados. "Os militares fizeram coisas bem-feitas. De certa maneira, construíram um Estado. Telecomunicações é coisa deles. Collor, este sim, seguiu uma receita neoliberal burra e destruiu o Estado. Mas, antes dele, quem realmente desmanchou a máquina do Estado fomos nós da oposição, o PMDB, no governo Sarney. Foi quando começou o loteamento dos cargos, todo mundo querendo uma fatia, uma sede tremenda e o Sarney entregando. Tudo foi trocado contra favores, uma vergonha. O regime militar tinha ocupado as empresas estatais, militares reformados em diretorias, essas coisas. Com o PMDB, o que se loteou foi a máquina do Estado: ministérios, hospitais, todo tipo de órgão, até o mais insignificante, tudo. O Estado desapareceu, virou patrimônio dos políticos." O próprio Fernando Henrique, no entanto, ao chegar à Presidência, parece ter concluído que política no Brasil era assim mesmo. Protegeu os três ministérios que considerava essenciais - Saúde, Educação e Fazenda - e entregou o resto aos de sempre, sob o argumento de que era isso ou a paralisia. Acomodou-se, a seu modo. Renan Calheiros foi seu ministro da Justiça.

Depois do almoço, novo encontro, agora com alunos escolhidos por mérito e excelência. FHC chega às 16h em ponto e troca palavras com quem já está ali. Quando chega finalmente a professora, traz um exemplar de Dependência e Desenvolvimento. Para espanto de todos, Fernando Henrique estica o braço e, fulminante, furta-lhe o livro. "Vejamos que edição é esta", diz. "É que eles nunca me informam qual a edição e não me pagam" - abertura FHC III, a do homem comum. Os vinte e tanto alunos estão ganhos. Diante de seu realismo cético, um rapaz quer saber: "Quem explica o mundo de hoje?" "O maior erro dos pensadores sociais clássicos foi o sonho de produzir um mundo homogêneo. Isso jamais acontecerá. Hoje, o que falta é uma síntese, uma atualização de Marx e os outros. Quem sabe você não a faz?", devolve ao rapaz. "Se fizer, por favor me cite." E encerra com o velho sorriso do sedutor em tempo integral.

De banho tomado e terno repassado, FHC assumia na noite seguinte o pódio do auditório de Chapel Hill. Era o seu quarto compromisso do dia, uma palestra para 500 pessoas. Numa sala adjacente, outra centena o acompanharia por um telão. Falou durante uma hora, lendo vinte páginas de texto. Estava cansado, as palavras em inglês se atropelavam. Para adiantar o expediente, foi comendo etapas do raciocínio, acrescentando and so on and so forth, "e assim por diante", às opiniões sobre Hugo Chávez, Evo Morales, globalização, fracasso da democracia. Aplaudiram-no de pé, talvez mais como reconhecimento ao esforço evidente e à simpatia que à clareza das idéias. Depois de uma longa sessão de fotografias - a invenção dos celulares que fotografam foi um mau momento para as celebridades, mesmo as acadêmicas -, terminou a noite numa lanchonete de estudantes especializada em pizza em fatias. O jantar custou 6 dólares.

Às 8 horas da manhã, comia com gosto um prato de panquecas regadas a maple syrup, seguidas de morangos com iogurte. Ia respondendo a perguntas: como comem os supremos mandatários? Banquetes de Estado são suculentos? Como é a comida em Buckingham, por exemplo? "Péssima!", garante. "Agora, é de uma formalidade extraordinária. Primeiro, a rainha vem te receber em Victoria Station. Aí nós entramos numa carruagem para o trajeto até o palácio. Como estava frio, eles estenderam uma manta. Eu do lado da Elizabeth, a manta por cima da gente. Pensei: Ai, meu Deus, agora é que minha perna encosta na da rainha." No palácio, foi apresentado a seus aposentos: "Ela mostra tudo: abre as gavetas, abre os armários, mostra o banheiro, mostra o chuveiro, é estranhíssimo. Depois vem a troca de presentes. Só que o Itamaraty nunca me dizia o que eu ia dar e eu peguei o primeiro que estava na minha frente. Ela ficou espantadíssima: 'But it is my horse!' - era um óleo do cavalo dela. Fiquei contente, ela havia gostado. Só então me dei conta do desastre: eu tinha acabado de presentear a rainha com o presente que ela ia me dar. O Rubens Barbosa, o embaixador, preparara durante meses o jantar de homenagem que ofereceríamos na nossa embaixada. Os royals chegaram todos, e nos sentamos à mesa. A Margareth, que é meio diferente, às tantas gritou para a rainha, lá do outro lado da mesa: 'Lilibeth, this wine is very bad!' - aquele silêncio. A rainha ficou vermelha, furiosa. E não é que tinha razão? O vinho havia passado do ponto. Ela é divertida. Durante a recepção, apontava a Elizabeth e repetia: 'The queen wants a dry martini'. E a rainha respondia, cada vez mais vermelhinha, bravíssima: 'I do not want a dry martini'.".

Fernando Henrique é Cavaleiro da Ordem de Bath: "Minhas filhas podem se casar na catedral de Westminster, eu posso ser enterrado lá e tenho direito a tomar banho com a rainha". Não pretende exercer o terceiro privilégio e tentou em vão convencer a filha Bia a fazer uso do primeiro. Quanto ao segundo, "já disse à Ruth: junto o meu dinheirinho e quando morrer vou pra lá de avião, direto pra Westminster". Ele brinca, mas gosta das liturgias do Velho Mundo. No Brasil, seria difícil manter qualquer sonho hierático. "Parada militar no Brasil é pobre pra burro", observa o homem que teve de presidir a oito festejos de 7 de Setembro. "Brasileiro não sabe marchar, eles sambam. Somos o povo menos marcial do planeta." Chateação sem tamanho: "A cada bandeira de regimento, a gente tinha de levantar, era um senta-levanta infindável", lembra-se com um esgar de pavor. Sem falar dos cabelos: "Em setembro venta muito em Brasília, então o cabelo fica ao contrário".

Fernando Henrique termina o café e segue para o aeroporto. Seu destino é Madri, com escala em Nova York, em classe executiva na travessia do Atlântico. Depois do jantar a bordo, alterna a leitura de A Marcha da Insensatez, da historiadora americana Barbara Tuchman (em tradução), com um thriller estrelado por Nicolas Cage. No Aeroporto de Barajas, de manhã, pela primeira vez recebe tratamento de ex-chefe de Estado. Um carro e dois funcionários do Itamaraty o aguardam na pista. É levado a uma sala onde alguém se encarrega dos trâmites de imigração e alfândega.

Dali a seis horas estaria sentado em torno de uma mesa em forma de U, numa sala confortável no subsolo do hotel Grand Meliá Fénix. Era a reunião do comitê executivo do Clube de Madri, que já presidira. A organização reúne 66 ex-governantes. Clinton é presidente honorário, o gigante ausente sobre o qual todos falam. Estão ali, entre outros, dois ex-presidentes da Colômbia, Andrés Pastrana e César Gaviria, que não larga o celular; as ex-presidentes da Irlanda e da Islândia, a severa Mary Robinson e a silenciosa Vigdis Finnbogadóttir; o ex-presidente de Moçambique Joaquim Chissano; os ex-primeiros-ministros da Bulgária e da Romênia Philip Dimitrov e Peter Roman (que passa parte da reunião folheando um jornal). À direita de FHC, está o ex-primeiro-ministro da Noruega ("Esse é novo, caiu há pouco tempo", explicará mais tarde). Ricardo Lagos, do Chile, é o novo presidente do Clube.

É uma reunião árida. Questões administrativas, financeiras e de agenda são tratadas ao longo de três horas. O aperto fiscal parece premente. César Gaviria, dadas as dificuldades financeiras, chega a sugerir que o Clube vá buscar recursos junto a empresas espanholas. "Podíamos até pôr o logotipo delas naqueles painéis atrás de nós quando a gente fala em eventos..." A sugestão é prontamente rechaçada por Mary Robinson, com voz de chumbo: "Não me agradaria ver o Clube associado a determinadas empresas".

Fernando Henrique sugere restringir um pouco a extensa agenda do ano: aquecimento global, Darfur, apoio à reforma constitucional no Equador, liberdade de associação em países muçulmanos da África, construção de uma sociedade democrática no Kosovo. Passam a uma longuíssima discussão - quarenta minutos - sobre a situação kosovar. Está em causa a conveniência ou não de enviar um representante do Clube a um seminário sobre a independência da região. Alguns membros fincam olhares perdidos nas paredes brancas, outros se distraem com rabisquinhos em papel timbrado do Clube.

À noite, Fernando Henrique vai a um restaurante especializado em cabrito, sua primeira refeição européia. Para quem veio de uma temporada nos Estados Unidos, a alegria é grande.

O ex-presidente dormiu bem aquela noite. Tão bem que, às 9 da manhã, um ônibus com todos os ex-governantes a bordo esperava por ele - em vão. O Clube de Madri co-patrocinava uma conferência internacional sobre cidades globais e era imperativo que seus membros chegassem na hora, sob pena de fazer naufragar o evento. Ricardo Lagos abriria a conferência. A responsável pelo protocolo, uma moça eficientíssima, decidiu que não esperava mais. O ônibus partiu com quinze minutos de atraso, a reboque de batedores que lhe abriam caminho para o centro de conferências. FHC surgiu no lobby do hotel a tempo apenas de ver o comboio se afastar. Esticou o braço e foi de táxi.

A primeira mesa-redonda, "Protagonismo da grande cidade e o papel das políticas públicas", dura quase duas horas. Na primeira fila, César Gaviria dorme à larga, a cabeça para trás. Fernando Henrique cochila discretamente, com o rosto apoiado na mão, como se refletisse. Na segunda mesa, "Instrumentos 'suaves' de política urbanística", caberá a ele sintetizar as idéias expostas. Duas horas depois, assume o microfone: "Não tenho muito a acrescentar porque minha única experiência com cidades foi a eleição que perdi para prefeito de São Paulo", desdenha, numa típica abertura FHC II. Passa então a rechear sua fala com a "coesão mecânica" e a "coesão orgânica" de Durkheim (mais tarde, no táxi: "É o bê-á-bá da sociologia. Olhei em volta, vi que não tinha um sociólogo, mandei ver"), e citações ao sociólogo alemão Tönnies, que explora os conceitos de sociedade e comunidade ou, no original, Gemeinschaft e Gesellschaft, como soltou Fernando Henrique em bom sotaque. Foi o quanto bastou para inspirar pasmo e aplausos de admiração. (No mesmo táxi: "São as únicas palavras que sei em alemão".)

No dia seguinte, Ruth Cardoso e a neta Julia juntaram-se a Fernando Henrique. A menina acabara de completar 18 anos e passaria uma semana viajando pela Espanha com os avós. Por volta das 11 horas, foram ao Museu Thyssen-Bornemisza, ver uma exposição temporária de retratos. Fernando Henrique faz fila diante do caixa, paga e volta exultante: "É a vitória do proletariado. Só 10 euros, pra mim, Ruth e Julia! E a moça ainda me pediu a carteira de identidade, pra comprovar se eu tinha mesmo 75 anos".

O presidente admira um Picasso neoclássico - Olga na Cadeira, de 1924, à moda de Ingres -, o que lhe dará ocasião de praticar um de seus divertimentos prediletos: implicar com as idéias progressistas de dona Ruth. "Mas isso é absolutamente acadêmico", ela se choca. "Ele só pintou porque ela estava cansada de ser retratada com dois olhos do mesmo lado. Deve ter pedido: 'Faz um retrato bonito, vai'. Aí, ele fez." FHC rebate: "Não é isso, não. É que Picasso é absolutamente genial. Dá cambalhota. É Deus". Dona Ruth: "Gênio, mas não por isso. Pelo que pintou antes". Ele: "É gênio, Ruth. Faz de tudo". E, antecipando o gostinho, encerra o sparring: "Aliás, eu me identifico muito com Picasso". Dona Ruth se vira para a neta e aconselha: "Não ouve isso, Julia".

À noite, amigos convidam a família Cardoso para um show de flamenco. A mesa é colada ao palco. A cada arranco do dançarino, que bate furiosamente os pés no chão, o presidente recua na cadeira, assustado.

Para o último jantar de FHC em Madri, no dia seguinte, ele, dona Ruth, Julia e um casal de amigos vão a um restaurante simplíssimo, quase um botequim. Oito mesas, se tanto. O ex-presidente vai direto para a cozinha e volta feliz: "Ganhei quatro votos", anuncia. As paredes são cobertas de fotografias - toureiros, políticos, o príncipe das Astúrias. "Vou ver as fotos", diz, e levanta de novo. Chegam croquetes, morcela, aspargos, queijo. Ele se farta. "A Ruth tinha essa educação comunista com os filhos, essa história de dividir tudo, inclusive a comida boa que de vez em quando eu trazia pra casa. Depois de um tempo, passei a lamber o chocolate na frente deles, pra ninguém meter a mão." "O camembert ele escondia no armário", confirma Ruth Cardoso. De sobremesa, Fernando Henrique derruba um prato de arroz-doce e se encanta quando descobre que ali servem rabanada também. Come rabanada a valer. Ao saber quem é o cliente, dono e funcionários do restaurante pedem fotos. FHC volta à minúscula cozinha e, junto do forno, posa com quatro empregados, todos com cara de mexicano. "Pronto, agora consolidei o voto", comemora. Alguém comenta: "Consolidou. No México".

Ruth Cardoso registra tudo, sem dar muita atenção. Se há alguém que não cai nos números do marido, é ela. Conta de uma viagem a Buenos Aires, quando passeavam pelo bairro da Recoleta e foram reconhecidos por um ônibus de turistas brasileiros. Confusão instalada, desceram todos e começaram a bater fotos. O sorriso de FHC se abre feito uma cortina. "Olha só pra ele", alfineta Ruth Cardoso. "Deviam ser todos petistas, Fernando, e você não passava de atração turística." Ele não se dá por vencido: "Em restaurantes de Buenos Aires eu sou aplaudido quando entro. É que eu traí os interesses da pátria, então lá eles me adoram". A neta Julia balança a cabeça: "Como é que ele diz essas barbaridades..."